INÉDITOS. 03

02-02-2014 10:59

Escrito já em 2010, ou seja no último ano de vida de António Telmo, esta breve página memorial sobre o seu amigo António Cagica Rapaz, desaparecido meses antes (em 13 de Dezembro de 2009), reflecte sobretudo, por parte do filósofo, a leitura do derradeiro livro do sesimbrense, uma sorte de autobiografia intitulada Tratar da Vida. Mas tem também seu quê de biográfico no que ao próprio Telmo diz respeito. É mais um inédito tírado do espólio télmico (o título é da responsabilidade do editor), e saído a lume na edição de ontem, 1 de Fevereiro, do jornal O Sesimbrense, que nos próximos dias chegará a casa dos assinantes e aos habituais escaparates. Para além do texto télmico, saliente-se a publicação, neste número de O Sesimbrense, do texto da palestra "Raul Brandão e os pescadores de Sesimbra",  proferida por António Reis Marques na Biblioteca Municipal de Sesimbra, em 29 de Setembro de 2012. 

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In memoriam António Cagica Rapaz

 

No Café Central, em Sesimbra, havia dois bilhares, um ao lado do outro. O Café era do Sr. Arménio, velho tuberculoso, mas cheio de vitalidade que me deixava jogar de borla, desde que o fizesse ao perde-paga.

Quando estava a jogar, costumava aparecer um rapazinho, muito aprumado, muito sério que se encostava ao outro bilhar, seguindo inteligentemente com os olhos o movimento geométrico das bolas, que eu impelia com o meu taco.

Depois, convidei-o a jogar, conforme vem contado por ele no livro que escreveu, alguns meses antes de abalar para onde todos, excepto um, tiveram, terão e têm forçosamente de ir.

Ele diz, no mesmo livro, que, se o seu destino não o tivesse futebolizado com passagem pela Académica, pela CUF e pelo Belenenses, teria talvez podido ser mais atento ao que eu lhe teria de certo ensinado.

Conta que apostei, com ele, num dia de muita chuva, que o povo tem razão quando afirma que “não há sábado sem sol”. Mostra-se convencido porque lá pela tarde abriram-se por instantes as nuvens para deixarem passar um raio de luz.

Apesar do futebol, era muito inteligente, não tinha embrutecido. Não vivia encegueirado por ele. Foi um notável jornalista, que nos encantou com as suas crónicas no Sesimbrense; escreveu livros que se lêem com o encanto das coisas sonhadas e só ali vistas. O seu estilo é simples, claro, tirando todos os efeitos dessa mesma simplicidade e clareza.

Mas o último dos seus livros subjuga-nos também. É uma autobiografia em que se confronta com o próprio pai e sai desse confronto admirando quem depois de Deus lhe deu com a mãe a vida.

Mostra-se ali que foi um lutador. Conheceu a ameaça da miséria material, defrontou a maldade e a intriga que se urdem no mundo do futebol, mas viu em Matateu um herói.

Na verdade, essa luta decorreu das situações difíceis que a vida foi criando, mas que se foram resolvendo com num sonho. Quando se julgava perdido, uma nova solução inspirada vinha abrir o caminho que parecia fechado.

A morte foi o último obstáculo, donde ele terá saído vencedor. Assim Deus o queira! queira!

 

António Telmo