DOCUMENTA. 07

11-10-2016 23:15

“Dionísio” e o Búzio: a estreia literária de António Telmo, setenta anos depois

Pedro Martins

 

A estreia literária de António Telmo não poderia ter sido mais humilde. Na verdade, e por isso mesmo, também não poderia ter sido mais autêntica, preciosa e original. E, provavelmente, não poderia ter sido noutro lugar. Completam-se no próximo sábado setenta anos sobre o dia em que em Sesimbra saiu o número 1 – e único – do Búzio, com o subtítulo Jornal de Sesimbra, onde Telmo publica pela primeira vez um texto seu. Trata-se do poema “Dionísio”, soneto escrito em francês, datado de 10 de Outubro de 1946 e assinado com o pseudónimo de António Provença. Aqui o publicaremos na data da efeméride, com transcrição, tradução para português e notas de Risoleta C. Pinto Pedro, que está a ultimar a edição literária da poesia de Telmo, parte integrante do próximo Volume, já o VI, das suas Obras Completas. Setenta não é um número qualquer: exprime a plenitude um ciclo. Daí que também por isso se impusesse a recolha definitiva em volume da sua criação poética neste ano de 2016.

O jornal é, pois, de 15 desse mesmo mês de Outubro de 1946. Mas debalde o leitor o buscará, ciente desta data, na Hemeroteca de Lisboa ou na Biblioteca Nacional. Tal como o número, o exemplar foi único. Morto à nascença por vicissitudes da baixa política local, o Búzio não emergiu à tona de um prelo, sendo antes escrito à máquina e ilustrado à mão. As imagens, primorosas, são de José Augusto de Andrade Júnior, o célebre poeta Zé Preto, cedo desaparecido.

O director e editor era o inevitável Rafael Monteiro, sendo seu chefe de redacção e administrador Manuel J. Palmeirim. A Redacção, lê-se no cabeçalho, era “Aqui, ali ou acolá”. Vale a pena transcrever o “Anúncio” do Búzio, deixar falar essa sorte de editorial que lhe domina a capa, sob a rubrica “Do cesto da gávea”:

 

Está presente o primeiro número de um jornal ambicioso – no título, na doutrina, no ideal que o concebeu e lhe deu forma.

Ambicioso, porque é de juventude, e só ela sabe ambicionar, com a irreverência que é virtude, no sonho que pode ser realidade. Ambição dirigida para cima, muito para cima… Apesar de isso, e por isso, jornal de rapazes e para rapazes, aberto a todos os que queiram vir connosco – no caminho da verdade, da honra, do trabalho e da fé.

“Búzio” se chama. É a voz do mar a chamar-nos para a luta, a acordar em nós o desejo de servir, a recordar-nos na sua ressonância estranha, a missão que tomámos sobre os nossos ombros de rapazes portugueses: servir a terra e servir a Pátria. Será esta a nossa tarefa, de todos os dias e de sempre.

Compreende-a tu, leitor, e nós nos encontraremos bem pagos do sacrifício que tão alegremente empenhámos – para te servir.

 

Subscrito pela Redacção, este texto é, na verdade, da autoria do director. Ainda na primeira página, o Búzio exara saudações ao «avozinho» O Sesimbrense, o jornal da terra, e ao «colega mais velho» e «irmão» Presente, folha dos Bombeiros Voluntários, feita pelo mesmo Rafael e por Manuel José Pereira.

Figura tutelar da modesta publicação – que tinha apenas seis páginas – era o excelente Padre José de Freitas, mais tarde merecedor da dignidade de Monsenhor. Assistente religioso da Mocidade Portuguesa em Sesimbra, mantinha ligação privilegiada com Rafael Monteiro e António Reis Marques, membro do Projecto António Telmo. Vida e Obra cujo valioso testemunho foi indispensável à elaboração desta nota. Homem bondoso, generoso, entusiasta, notável condutor de homens, guardava uma posição de neutralidade face ao Estado Novo e mostrava-se tolerante perante todos. Veio a ser um destacado colaborador de O Sesimbrense, numa época em que os serões no jornal se prolongavam pelo velho Ribamar, a dois passos dali. Não poderia deixar de assinar colaboração no Búzio, com um artigo intitulado “Deus”, a quem brandamente vincula a jovem equipa e o ideário do novo jornal.

O já referido Palmeirim, Luiz de Melo, rapaz de Coimbra, e Jaime D. C. Neves são outros colaboradores da folha, onde se incita à compra e à leitura da Arte de Ser Português, de Teixeira de Pascoaes, e da Mensagem, de Fernando Pessoa. Ainda que venham a ser estes os dois grandes poetas por Telmo estudados no ciclo do povo da História Secreta de Portugal, o incitamento, desta feita, foi da lavra de Rafael, segundo assevera Reis Marques.

Zé Preto, além de o ilustrar, dará em verso “A História do Búzio…”, onde o jovem Telmo é o Tó:

 

Era uma vez um jornal

que ainda está para sair…

Senhores, muita atenção

sua história ides ouvir:

 

Entra o Rafael, sorrindo

- perdeu o ar macambúzio –

- Já tem título, já tem título,

o jornal chama-se o “Búzio”.

 

O Tó todo radiante

dá um pulo triunfal

e sobe ao cesto da gávea

no tope do mastro real.

 

Mas o Marcos não concorda

e não acha a coisa boa

- cesto da gávea, protesto!

é melhor pôr: “lá da proa”.

 

Vai-se o caso complicando

- Eu digo que sim! – Eu não!

às duas por três o Jaime

já tinha a lua na mão…

 

O Palmeirim com veneta

reage de má catadura

mete a chave na lingueta

dá a volta à fechadura!...

 

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E lá dentro na cozinha

A Angelina a resmungar:

- vão pró diabo que os carregue,

eu quero é ir-me deitar.

 

Percebe-se a exasperação da mulher de Zé Preto quando verificamos que o poema está datado de “Sesimbra, / Quarto de V. Ex.ªs”. Parece que desta vez a Redacção se instalara no lar do poeta, alvoroçando-o. Mas com o nomadismo dos plumitivos contrasta a circulação do único exemplar do Búzio, restrita às mesas do Café Central. Era aqui que se reunia a tertúlia formada ao redor das figuras maiores – e mais velhas – de Rafael e de Preto. O Búzio, de alguma forma, seria o órgão literário e artístico de um grupo a quem António Telmo viera rasgar novos horizontes intelectuais e espirituais, iniciando-o, primeiro, nos grandes poetas portugueses, e mais tarde, sofrendo já o influxo lisboeta de Álvaro e de Marinho, nos autores da Filosofia Portuguesa.

O poema de Telmo, como se disse já, está datado de 10 de Outubro desse ano de 1946. A pseudonímia patente na assinatura “António Provença” não pode deixar de evocar a poesia trovadoresca e, porventura, a kabbalah, a partir de um dos seus principais focos de irradiação. Neste sentido, o título do poema, “Dionísio”, é susceptível de nos remeter para D. Dinis, até por a data da composição ser o dia imediatamente posterior ao do aniversário do Rei Lavrador. Mas pode muito bem tratar-se, por outro lado, de uma homenagem do jovem poeta a seu pai, António Martinho Diniz Vitorino. Não sabemos. Ao princípio era o segredo…